Eu não sabia o que pensar. Eu mal sabia o que sentir. Eu apenas corria. Corria entre os corredores, me escondendo dos principados, me esgueirando, fugindo, indo ate Sura. Ela estava sendo protegida, havia vários deles pelo caminho, mas eu consegui passar a todos sem ser percebida. Um único pensamento em mente. Não foi ele, não poderia ser. Talvez por isso eu consegui ser tão precisa, tão cautelosa, atravessar todo o Instituto sem ser vista. Eu fui sorrateiramente do jardim a parte frontal do Instituto. Eu nunca tinha ido ate lá, era sempre ela que vinha a mim, mas eu sabia onde ficava. Ficava próxima a entrada, na parte mais distante das salas e das áreas de treino, mas bem próxima ao perigo que estava se instituindo aqui. Eu tinha quase certeza que Sura não estaria em seu quarto. O Conselho provavelmente a tiraria daqui o mais rápido possível, considerando o perigo que ela corria. Ela era uma das mais velhas dominações e mais poderosas, um alvo valioso para a Corte. Porém eu tinha que tentar. Talvez ainda não tivesse tempo de tê-la tirado do Instituto, talvez ela ainda estivesse se preparando para ir ou mesmo decidido ficar, contra as decisões do Conselho. Não havia ninguém no corredor estreito ou mesmo perto a porta. Fui ate a porta em passos contados e escutei a voz de Sura. Eu estava certa, ela ainda estava aqui, mas não sozinha.
- O que esta acontecendo aqui, Sura?
A voz soou ameaçadora e seca. E eu sabia bem quem a pronunciava.
- Eu não tenho mais nada a dizer Victor, agora saia do meu quarto...
Houve um riso curto, descrente.
- Você acha que toda essa história me convence? Você acha que eu vou acreditar no que a Bianca disse? A Luisa pode odiar o Instituto, mas ela odeia mais eles do que tudo isso. Ela preferiria morrer a se envolver em toda essa guerra novamente, você sabe disso Sura. Agora, me diga o que esta acontecendo aqui...
- Ela já se envolveu quando decidiu voltar pra cá Victor. E eu não me importo com que você acredita, eu só quero que você saía.
O silêncio perdurou por um tempo. Tempo suficiente para me dizer que as coisas estavam tensas.
- Eu não vou sair daqui ate você me dizer o que realmente esta acontecendo... Porque você esta mentindo Sura? O que você e o Lucius escondem de mim?
- Eu não escondo nada Victor, eu já te disse isso. Agora, por favor, saía do meu quarto.
A voz de Sura ficou mais tendenciosa. A última frase não soou mais como um pedido e sim uma ordem. Mas isso não afetou Victor, na verdade ele ate riu.
- O que você acha que é pra mentir assim... Eu conheço cada detalhe seu, cada olhar, cada gesto, cada mentira – ele degustava as palavras agradado com o silêncio de Sura – cada segredo que se esconde por debaixo da sua pele. Sua falta de fé em mim sobre isso me ofende.
- E você ainda se vangloria, Victor. Previsível. Se você me conhecesse tão bem saberia o que esta acontecendo aqui, mas as coisas mudaram, eu mudei. Nada é como antes. Não confunda o passado com o presente, Victor. Eu já esqueci tudo... Pensei que você também já tivesse. – sua voz mais distante agora, dizendo que ela estava cansada de discutir.
- Você esqueceu? Eu não acho – houve uma pausa, entre um respirar e outro - Você não mudou nada, meu anjo, eu posso ver em seus olhos, nesses lindos grandes olhos verdes, que você me ama, que você sempre vai me amar.
- Não Victor... Eu não te amo mais, não depois de tudo. Eu te amei com todas minhas forças, mas não mais.
- Você mente pra mim – a voz de Victor alterada, mais grossa e desesperada – Você mente sobre isso, sobre a Luisa, sobre a Claire, sobre tudo. Desde que eu conheci a Claire, eu sei que tem algo que você esconde. Eu provei o sangue dela, senti o gosto tão familiar pra mim, eu sei o que ela é...
- Você fez o que?!
Sura, que parecia tão controlada, gritou com força, fúria. Ela parecia não acreditar no que acabava de escutar. Um frio arrepio se estendeu por minha nuca.
- Porque você a escondeu do Conselho, Sura? O que você planeja fazer com ela? O que há de tão especial nela?
Um estrondo forte se fez na porta, fazendo me afastar um pouco, mas continuei no mesmo lugar.
- Você sugou o sangue dela? – ela diminuiu seu tom de voz, mas eu pude sentir por detrás de cada palavra a raiva – Você esta a usando... Usando sem se importar com as conseqüências, você sabe o que pode acontecer se o Conselho descobrir e você não se importou. Eu não vou deixar você fazer isso a ela, fazer o mesmo...
- Que eu fiz a você.
Eu pude ouvir o ressentimento na voz de Victor, como uma dor profunda, cheia de arrependimentos. Aos poucos eu entendi o que aquilo poderia significar e por pior que possa ser, eu me senti traída.
- Eu não vou permitir isso Victor, você não vai usá-la mais. Eu o mato antes que você possa fazer algo.
- Me matar? - Victor agora estava sendo como sempre fora, irônico e frio – Não há como você me matar, eu morri no dia em que você me deixou.
- Deixei você?! – a raiva de Sura aumentando gradualmente – Você me abandonou, Victor, só você! O que você acha que aconteceu depois? Eu já estaria morta se não fosse Lucius. O único culpado foi você.
- Eu fiz o que era necessário.
- Da mesma forma que você esta fazendo com Claire, certo? Magoando-a, manipulando pra conseguir o que quer...
- Porque você se preocupa tanto com ela? Se eu estou a usando? Sim, eu estou. E estou me fodendo pra isso ou pra ela. Mas e você que se diz tão preocupada com bem estar dela? Você a usou de uma forma pior, mentiu pra ela, escondeu a verdade...
- Eu só estou a protegendo...
- Protegendo? – ele riu baixo – Você acha que ela também vai achar isso quando souber a verdade? Que um dos seus amiguinhos é um principado do Conselho? Quanto tempo você acha que ela vai demorar pra descobrir sobre o Jeremi? Duas semanas, três dias? Depois desse ataque eu não duvido nada que ela já não saiba...
- Ela vai entender... Com o tempo.
- Aquela garota estúpida ainda nem suspeita de nada. Nem depois do dia do baile, quando você tentou esconder ele de mim, ou mesmo quando eu dei várias dicas... O seu melhor amigo é apenas mais um executador, mais um segurança tentando descobrir coisas pro Conselho. Pelo menos isso serviu de alguma coisa pra mim, nosso acordo, seu sangue...
Eu não ouvi nada depois disso. Meu coração se contraiu no peito, eu senti a dor aumentar, crescer, me controlar, me cegar. Abri a porta sem me importar, eu só precisava ver o rosto de Victor, o rosto de Sura. Os olhos dele foram subitamente a mim, assim como os de Sura. Eles tinham as expressões em branco, não acreditando que eu estava aqui. Sorri, de forma amarga. Andei ate Victor, seus olhos impenetráveis, vi Sura se contrair um pouco com a minha aproximação. Cheguei perto, querendo ver dessa vez, ver em seus olhos a verdade.
- A garota estúpida agora sabe a verdade.
Seus olhos azuis se estreitaram, parecendo quererem me ler, sua mandíbula contraída, as narinas abertas. Ele estava me testando.
- Um pouco tarde, você não acha?
Eu tive que rir. Eu podia vê-lo agora, o grande filho da puta que ele era.
- Tarde? Nunca é tarde, Victor.
Eu não disse nada por um tempo, apenas encarando seus olhos azuis intensos. Por quê? Porque ele me manipulou assim? Eu nunca pedi nada alem do que ele pretendia me dar, nosso acordo, eu estava disposta a dar sem que eu precisasse me envolver em tudo isso. Mas ele mentiu, como todo mundo parecia estar acostumado a fazer comigo. Eu não tinha o direito de me sentir assim, não depois de tudo que aconteceu ontem à noite, mas me senti rasgar por dentro, uma dor latente furando cada pedaço da minha sanidade. Eu queria gritar, bater, fugir, mas ao invés disso eu apenas despejei minha dor nele.
- Eu confiei em você, confiei em você como eu nunca fiz com ninguém. Eu nunca pedi mais, Victor, eu estava disposta a te dar as minhas memórias sem que você precisasse fazer tudo isso, me seduzir, me fazer acreditar que havia algo. Mas você preferiu o caminho mais fácil...
Ele riu, e ao ver o seu sorriso débil eu pude sentir uma ferida maior se fazer em mim.
- Usando você? Quem usou quem ontem à noite, en Claire? Não pense que pode me enganar ou me pedir algo em troca, você gostou tanto quanto eu de ser usada e me usar...
- Você acha isso? – me aproximei, apenas a centímetros, olhando em seus olhos, colhendo as verdades – Eu nunca, nunca menti sobre o que eu sentia sobre o Lucius. Mas no dia em que você me disse que havia amado alguém e que era para eu esquecer, deixá-lo ir, eu me entreguei ao que você me disse. Eu realmente tentei esquecê-lo. Durante esses dois meses a única coisa que vivi foi você, eu fui estúpida o bastante para gostar de você. Eu acreditei que você realmente havia amado, que o amor da sua vida estava morta, e que você fosse capaz de me fazer amar de novo, mas estava errada. Você não é capaz de amar ninguém, Victor, ninguém alem de si mesmo.
Ele apertou mais os dentes, os olhos frios, a expressão demoníaca, o real vampiro.
- Por mais que eu tentasse – ele disse entre dentes, segurando sua raiva – você nunca o esqueceria, não use isso como desculpa.
Desviei meus olhos dos dele.
- Eu sei disso Victor... Mas então porque dói? – voltei a olhá-lo, apertei minha garganta como se a dor e a angustia me sufocasse – Porque dói tanto?
Ele não disse nada ou fez. Afastei-me quando vi seu olhar. Eu não poderia sentir mais nada por ele, ele era nada para mim, eu mal o conhecia. Tinha que me afastar, tirar esse medo de mim.
- Eu conheço seus medos Victor e usaria todos contra você... Você me ensinou isso, lembra? Quero você fora da minha vida, Victor. E se você não fizer o que eu estou dizendo e vou expor você ao Conselho, independente das conseqüências...
A tensão se expandiu no pequeno quarto. Eu ameacei Victor e por incrível que pareça, ele hesitou.
Voltei-me para Sura, que observava a cena, mas ela não disse nada. Ela não era tão diferente de Victor, ela me escondeu tantas coisas. Sobre Jeremi, sobre Victor, sobre Lucius. Agora tudo parecia se encaixar, o dia que ela saiu do Instituto, o “acidente da avó” de Jeremi, as conversas constantes de Victor com Sura. Eles tinham um passado, um passado escuro que eu não conhecia, mas que eu estava envolvida.
- Você mentiu para mim Sura, logo você...
Ela não estava mais na defensiva, tinha a expressão séria, o corpo rijo em seu vestido longo vermelho.
- Não fale algo sobre o que você não sabe Claire.
- Você tem razão Sura. Eu não sei. Eu nunca sei. Mas eu acreditei em você, acreditei em você para me guiar, me dizer o que fazer e você só me deixou mais confusa, perdida. E pra que? Porque você mentiu? Você foi a pior de todos.
Limpei meu rosto devido a lagrima que descia. Ela não disse mais nada, apenas me encarava. Eu não poderia continuar ali.
- Aonde você vai Claire?
Sura disse preocupada, mas não me impediu de sair. Eu precisava ir. Ir para outro lugar. De novo, como sempre. Eu não poderia confiar em ninguém. O que o Lucius sabe? Ele não me diria. Os pensamentos perdidos. Eu não sabia o que fazer. Jeremi. Sim, o Jeremi me diria. Eu o faria dizer. Ele me devia isso. Enfermaria. Ele estaria ali. Claro! Eu tinha que ir a enfermaria, agora. Precisava saber do que eles diziam e Jeremi me diria isso. Andei através dos corredores, sem me importar se alguém me veria ou não. Atravessei os corredores, notando os olhares, ninguém me impediu de ir. Estranhei, mas continuei. Onde eu estava indo? Enfermaria. Ela sussurrou para mim. Andei, com a dor ainda em meu peito. Eu podia sentir a dor aumentar, a náusea em minha garganta. Isso não estava certo. Meu pulso ardeu, segurei o grito. Todos me olharam quando entrei no quarto principal da enfermaria. Pude reconhecer o rosto, não um, dois. Sam estava deitado sobre uma das macas, em meio a tantos outros, enquanto Jeremi estava ao seu lado, com o rosto tenso, as mãos sobre Sam. Ele estava preocupado, eu tinha que ir ate ele. Não! Venha a mim Claire. Escutei a voz, mas não pude reconhecer de onde ela vinha. Continuei a andar, indo ao corredor onde estavam os outros quartos. A dor aumentou mais, me segurei em uma das janelas tentando me recuperar. Minha visão falhou uma, duas vezes. Você esta perto irmã. Estou aqui! Bianca. A náusea aumentou ainda mais. Bianca estava aqui. Em um dos quartos. Eu pude ver o quarto, as sombras saindo através da porta. Elas sorriam a mim agora. De novo não. Aqui não! Arrastei-me sobre meus pés. Precisava ir ate ela. Meu pulso dilatou mais uma vez. As sombras se alastrando sobre as paredes, escondendo as janelas como cortinas escuras, negras. Não poderia ser, não ela! Cheguei à porta com o medo em meu corpo e em minha mente. Entre... Dobrei a porta para ver o que era inevitável. Minha irmã, sem asas. A imagem desconexa. Eu podia ver minha irmã, como sempre fora, com uma calça jeans suja de terra, sua blusa preta fundida a sujeira de seu corpo, mas não só isso. Havia manchas extensas, que iam dos seus pés descalços ate seu rosto branco, um degradê marrom com tons vermelhos vivos, principalmente em suas mãos. Sangue, era sangue. Retrocedi alguns passos, mas a porta atrás de mim se fechou. A olhei novamente. As sombras se desprendendo e preenchendo o quarto, dessa vez diferente, densas e mais escuras, negras se arrastando entre a cama e o chão, a mesa de canto e a cadeira, e nela, entre seu cabelo loiro e seu pescoço delongado, entre suas pernas e seu colo, entre seus dedos e sua pele. Pele branca, eu poderia ver suas finas veias através de sua pele branca, transparente, morta. Suas mãos embrenhadas de sangue, não havia mais unhas e sim garras, unhas grandes, capazes de rasgar qualquer pele, carne ou osso. Olhei a parede querendo encontrar suas asas ou vestígios dela, mas não havia nada, nada, alem da mistura brusca entre o negro e o vermelho. Vermelho que estava em suas mãos, sua pele e olhos. O azul de seus olhos desfoques, contornados por uma linha grossa e densa vermelha, preenchendo cada vão branco. E seu olhar. Seu olhar frio, distante, morto e assassino. Não disse nada, não poderia dizer. Não acreditava, eu não podia, não deveria. Não ela! Não minha irmã! Ela encontrou meus olhos, ainda sentada tranquilamente em sua cadeira branca, com um sorriso em seus lábios.
- Finalmente... Você pode me ver.
Queria correr, correr disso tudo. Por quê? Porque comigo? Ela me disse aquelas palavras com orgulho, mas só o som de sua voz me arrepiava, me enojava. Tentei sair, ir ate ela ou correr dela, mas meus pés estavam presos ao chão, como ervas daninhas, sugando, chupando, extraviando. Desta vez não houve duvidas ou imagens desconexas, eu a via como ela realmente era ou é. Demônio.
- Não... apenas, não.
Seu sorriso aumentou e então ela se levantou. Seus passos ajustados, sem medo, feliz? Ela parou em frente a mim, com os olhos fixos.
- Ouw irmã... – sua expressão com um toque divertido – o quão estúpida você é?
Estúpida o bastante para ter acreditado em você. Mas ao em vez disso eu não disse nada, eu não conseguia. Sua mão veio de encontro ao meu rosto, mas eu me afastei.
- Shiii... Não tenha medo Claire, eu não vou te fazer mal. Não ainda.
Então sua mão suja de sangue e morte me tocou. Cada terminação nervosa se estalando sob minha pele, minha respiração falha, a dor se instalando por todo meu corpo e meu pulso parecendo sangrar, rasgar.
- Minha irmã, minha pequena Claire... Sempre tão fraca, cega.
- Foi você... Foi você que os matou.
Eu podia sentir o aperto em minha garganta, as lágrimas por vim, mas eu não conseguia chorar. Eu me negava a isso.
- Sim, eu os matei... – ela sorriu, parecendo sincera – Eu pensei, pensei que já soubesse Claire, que já tinha me visto no baile, mas você é tão frágil. Você preferiu ver o que queria, não a verdade...
Desviei meus olhos dos dela, mas ela segurou meu rosto com as duas mãos, querendo me fazer olhá-la, me abrigar a isso.
- Olhe para mim, Claire... Olhe o que eu me transformei, o que eu sou.
Sua voz mais descuidada dessa vez, com raiva e dor. Então eu a olhei, seus olhos vermelho-azuis.
- Você é minha irmã, Bianca... Então porque eu deveria saber? Se eu não acreditasse em você, em quem mais eu acreditaria?
- Eu não sei se você é ingênua ou burra, eu só sei que minha irmã você não é, não deve ser... Eu só odeio você, por tudo que você é, tudo que se tornou... Tão dependente, frágil, burra, fraca, fraca, fraca.
Suas unhas se aprofundando em minha carne, alastrando o veneno de suas palavras. Eu não conseguia dizer nada, me sentindo exatamente como ela me descrevera.
- Mas eu não vim a que pra te dizer o óbvio... – ela se afastou, com uma calma assustadora, como se estivéssemos tendo uma conversa normal – Eu te chamei aqui pra me despedir.
Eu a olhei assustada. Ela iria fugir.
- Despedir?
O choque indo, dando lugar a dor, a raiva, fúria.
- Não! Você não vai. Deixar que o Lucius e a Luiza levem a culpa? Você esta louca se acha que eu vou deixar isso acontecer!
- Eu não acho, eu tenho certeza...
- Eu não sou a única estúpida nesse quarto...
- Porque eles não acreditariam em mim e sim em uma executadora vingativa e um anjo exilado. Eu sou um anjo aos olhos dele, a síntese de tudo o que já foi perfeito.
- Eles não acreditariam em você depois de eu dizer o que eu vi!
- Acreditar em você?! A garota que esta apaixonada, que transou com o assassino, que seria capaz de fazer de tudo por ele... Eu não acredito nisso...
Eu perdi a noção do espaço e do perigo, me aproximei, sem medo, sem dor.
- Eu os faria acreditar, talvez eles não te acusassem, mas não a deixariam ir.
- Você tem certeza?
Eu não respondi, ela pode ver através dos meus olhos que eu seria capaz de fazer pelo homem que eu amava.
- Eu realmente espero que você não faça isso, Claire. Se não eu serei obrigada a matar cada pessoa que você ama, primeiro suas amiguinhas, depois Jeremi, Sura e finalmente Lucius... E não pense que eu não sou capaz, eu sou tão forte e mortal como eles, alem do mais eu nunca estou sozinha.
- Então porque você não faz isso agora? Mate os, me mate!
Ela riu, debochada.
- Você acha que eu não quero. Matar você é tudo que eu espero... mas eu sigo ordens. E eu não sou burra de cometer esse erro, tudo ao seu tempo.
Ficamos assim, nos olhando, e eu não podia acreditar em que via. Minha irmã, que eu sempre amei, querendo me matar.
- Agora eu acho que vou indo...
Seu corpo deslizou com graciosidade, seu rosto agora sem nenhuma expressão, atuando para todos que estariam fora deste quarto. Eu a impedi um segundo antes de ela ir, segurando a pele asquerosa de seu braço, olhando seus olhos vermelhos de lado.
- Não pense que eu deixarei isso assim.
Ela me olhou de cima em baixo, com nenhum medo aparente.
- Claire... O que você seria capaz de fazer pelo homem que ama?
Sua voz profunda, cheia de provocações e ameaçadora. Eu pude ver nela a real sugestão da sua pergunta. Ela o mataria... A pergunta era se eu o deixaria morrer para que ninguém mais se machucasse com essa historia. Eu não poderia responder essa pergunta, mas ela parecia já saber a resposta.
- Bem... Eu também.
Então ela se foi, como uma brisa fria, sussurrando nomes de morte, minha própria morte, a morte de Lucius. Eu continuei ali, olhando as sombras se esvaindo, indo junto a ela. Eu vi a parede branca se desfazendo do escuro negro que era alma dela agora. Minha irmã. Aquela que viveu comigo ate os meus sete anos. Cuidou de mim como uma irmã mais velha ate ela ser levada. E mesmo assim eu sempre tive a esperança de um dia reencontrá-la e reencontrei. Desde o primeiro dia que eu a vi, na sala da enfermaria, neste mesmo quarto depois de eu ter saído do coma, eu sabia que ela estava diferente. Mas não assim. E eu ainda a amava, por mais distante que ela estava de mim, depois de tudo que ela fez, ela era minha única família. Eu nunca conheci minha mãe ou meu pai, a única coisa que eu sabia deles era que eles tinham morrido em um incêndio e que eu havia ido parar no orfanato de São Joaquim, mais nada. Então, agora, minha irmã tinha sido arrancada de mim. Eu não a conhecia, talvez eu nunca conhecesse. Mas quem eu realmente conhecia? Parecia que ninguém. Apenas Lucius. Eu tinha que acreditar nisso. Ele não me trairia, não ele. Eu tinha que sair daqui, encontrá-lo, ver seu rosto, ficar entre seus braços. Ele saberia o que fazer. Atravessei o pequeno corredor praticamente correndo. Choquei-me com olhares duvidosos e desconfiados. Não tinha tempo, tinha que ir. Mas algo, não, alguém me impediu. Jeremi.
- Você ta bem?
Eu vi seu rosto, sujo, alguns machucados, algumas cicatrizes, seu cabelo um pouco bagunçado e seus olhos cor de mel. Mas quem ele era, eu não saberia dizer.
- Não...
Tentei me desvencilhar dele, dar as costas e sair da enfermaria, mas ele não deixou.
- Fala comigo...
- Não! Não me toque!
Debati-me entre suas mãos e consegui sair. Pude ver, no seu olhar, que ele deveria saber o que eu sabia agora. Não falaria com ele agora. Talvez nunca. Seus olhos, suas mãos quentes, seu ar preocupado. Por quê? Saí e corri. Corri nos corredores, entre os principados. Lucius. Apenas Lucius. Eu nunca pensei que as coisas poderiam mudar tão rapidamente. Eu tive a noite mais feliz, completa, perfeita que eu poderia ter, mas agora, agora tudo desmoronava. Passei pela parte externa, no jardim, não querendo ver ninguém mais. Passei as piscinas e fui direto para seu quarto. A porta estava levemente aberta, então ele ainda estava...
- Luisa?
Perdi o ar quando a vi ali, sentada a mesa redonda, com o rosto entre suas mãos. Ela não estava tão diferente de mim. Ele subitamente me olhou quando adentrei ao quarto. Eu não sabia o que dizer ou fazer. Suas roupas estavam limpas, mas não seus olhos. Estavam foscos, tristes, perdidos. Pude ver que em cima da mesa havia um copo com um liquido marrom-dourado. Provavelmente uísque. Mas ela não parecia bêbada, apenas confusa.
- Claire... Não fique parada aí. Eu não mato... Pessoas.
Ela riu da sua própria desgraça. Como de costume, ela ainda estava sendo ela.
- Você sabe onde o Lucius esta?
Eu hesitei um pouco ao perguntar, mas não havia tempo para isso. Ela não respondeu, apenas sorriu para mim. Sádica.
- Eu costumava ser igual a você Claire... Eu acreditava em tudo em que eles diziam, eu dediquei minha vida por isso. Agora, é como se nada tivesse valido à pena. Uma Instituição que se acha acima das leis humanas não deveria ser levada a sério. Mas aqui estou, sendo acusada de novo por eles. Desta vez não haverá redenção...
Não pude dizer nada. Eu não sabia do que ela falava.
- Agora eu entendo Claire. Eu nuca poderei tê-lo. Mesmo que você morra, desapareça... É a você que ele vai amar, sempre. Eu só te peço uma coisa. Não o machuque mais, tudo bem?
Então ela estava desistindo. Eu nunca pensei que ela um dia iria, mas aqui estava ela fazendo exatamente isso.
- Eu sinto muito Luisa.
- Não sinta... Eu não sinto.
Ela bebeu mais uma dose do seu uísque e apontou para o quarto de Lucius, com os olhos ainda em mim.
- Ele esta ali.
Apenas acenei e fui ate lá. A dor aos poucos esvaindo. Ele estava perto, de novo. Ele me ajudaria. Abri a porta com receio e eu o encontrei no mesmo lugar onde eu havia o deixado.
- Lucius?
Encarei sua figura. Ele segurava uma mochila com algumas roupas e armas. Ele me olhou com os olhos fugazes e continuou a fazer o que estava fazendo. Eu olhei aquela cena sem entender. Ele estava fazendo as malas?
- Que você ta fazendo?
Ele fechou a mochila e a colocou sobre os ombros, ainda sem responder. Andou ate a mim e atravessou o pequeno espaço de mim ate a porta, sem me olhar nos olhos.
- Onde você esta indo?
Ele continuou a andar, indo ate a Luisa.
- Tudo pronto?
- Sim.
Ela tirou uma sacola da cadeira ao lado, que eu não tinha visto antes, e se levantou. Deu um último gole em seu copo e olhou para mim.
- Ate mais Claire – olhou Lucius – Eu te vejo lá fora.
Saiu, me deixando a sós com Lucius. Ele não me encarou a principio. Parecia com medo.
- O que esta acontecendo aqui Lucius?
- Eu tenho que levar a Luisa antes...
Aproximei-me e o virei para mim.
- Fale comigo olhando em meus olhos Lucius. Agora me fale o que esta acontecendo...
- Eu vou sair agora, levar a Luisa para um lugar segura. Eu vou voltar...
- O que? – disse aflita – Não Lucius! Eu preciso conversar com você.
- Não agora Claire. Agora eu preciso ir.
- Mas eu preciso conversar com você...
- Não Claire! Você não entende? Isso tudo é minha culpa! Agora a única coisa a fazer é consertar meus erros...
Retrocedi alguns passos. Sua culpa? O que ele queria dizer com isso? Todo mundo, todos, estão mentindo pra mim. Baixei minha cabeça com medo de encará-lo. Ele se apressou a cortar o espaço que estava entre nós.
- Olhe para mim Claire – ele apertou um dos meus braços enquanto sua outra mão acariciou meu rosto – Não tenha medo. Eu vou voltar, menos de duas horas e eu estarei de volta, então nós conversaremos. Agora eu não tenho muito tempo, eu preciso ir.
Ele me evolveu em seus braços e me puxou para cima, alcançando minha boca. Beijou-me, contaminou cada centímetro do meu corpo. Eu o amo, eu o amo tanto. Desencostou sua boca da minha e sussurrou.
- Eu te amo... Não se esqueça disso.
Separou seu corpo do meu, ajeitou sua mochila em suas costas e se despediu com seus olhos. Então ele se foi, me deixou ali, me abandonou mais uma vez.